O sequestro da democracia


A democracia se esvazia quando o voto deixa de ter força prática: elites judiciais e midiáticas passaram a tutelar governos eleitos, sequestrando a soberania popular. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

Obviamente, a democracia representativa não se resume ao ato de votar: seja de esquerda, centro ou direita, qualquer governo eleito precisa dos meios institucionais para transformar votos em políticas concretas.

Nos últimos anos, porém, multiplicaram-se exemplos globais de líderes que venceram eleições com forte apoio popular, mas foram tolhidos em sua capacidade de governar por forças externas: tribunais intervencionistas, parlamentos fisiológicos, burocracias resistentes e grande mídia hostil.

A distância crescente entre ganhar uma eleição e governar sugere a consolidação de um fenômeno preocupante: democracias tuteladas — regimes nos quais o voto popular continua existindo, mas sua força transformadora é mitigada ou neutralizada por camadas de poder que não se submetem ao escrutínio das urnas.

O resultado é um impasse: um presidente que é eleito com base na promessa de ruptura com o sistema, mas se vê refém das mesmas estruturas que prometeu reformar.

Esse fenômeno, ilustrado por casos como Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro no Brasil, Benjamin Netanyahu em Israel e Javier Milei na Argentina, revela um padrão no qual líderes de direita enfrentam, invariavelmente, obstruções que os impedem de exercer plenamente o poder concedido pelo povo. Após a vitória, todos enfrentaram um cerco institucional e midiático que limitou drasticamente sua capacidade de ação.

Hoje, no Brasil e no mundo, vencer nas urnas confere legitimidade formal, mas já não garante controle sobre o Estado.

Está em curso um sequestro sutil da soberania popular: duas formas de ativismo – judicial e jornalístico – atuam como freios ao candidato eleito e ditam os rumos da política

Nesse modelo, o Judiciário reinterpreta leis a seu bel-prazer para bloquear agendas de governos conservadores, enquanto a grande mídia, movida por sabe-se lá quais interesses, amplifica as narrativas da oposição e opera como instrumento de engenharia social. A mídia se alinha ideologicamente ao Judiciário e a parte da elite burocrática, formando um tripé de poder que neutraliza a vontade majoritária.

Ora, quando o dissenso é tratado como ameaça à democracia, o espaço público se estreita. O eleitor perde referências confiáveis e o debate é substituído por campanhas de linchamento moral.

liberdade de expressão foi uma das primeiras vítimas desse ambiente. A censura não se apresenta mais como proibição direta, mas como “moderação de conteúdo” ou “combate à desinformação”. Na prática, porém, o resultado é o mesmo: o silenciamento de vozes dissidentes.

Está em curso um sequestro sutil da soberania popular: duas formas de ativismo – judicial e jornalístico – atuam como freios aos candidatos de direita e ditam os rumos da política.

Enquanto isso, a mídia aposta em coberturas que influenciam comportamentos eleitorais, criando narrativas hostis contra a direita e justificando intervenções judiciais heterodoxas.

Pior ainda: a censura praticada em nome da liberdade cria um ambiente de medo, no qual políticos, jornalistas e cidadãos comuns críticos ao governo se veem obrigados a moderar suas opiniões para evitar sanções. Quando o medo substitui o debate, a democracia perde sua substância.

O resultado concreto é a transferência do poder decisório do eleitor para tecnocratas e magistrados, por meio de uma campanha sistemática de deslegitimação que molda a opinião pública e cria a permissão moral para ações judiciais extraordinárias. Ao mesmo tempo, o controle das redes e o consumo concentrado de notícias em poucos veículos de comunicação ampliam o viés cognitivo e reduzem a pluralidade informativa.

Os quatro casos mencionados revelam um padrão convergente: a crescente dificuldade de governar contra o consenso das elites institucionais e midiáticas.

Donald Trump enfrentou um cerco judicial e midiático sem precedentes. Decisões judiciais barraram decretos imigratórios e medidas executivas, enquanto a imprensa tratava seu primeiro governo como uma ameaça à democracia. A narrativa dominante consolidou a imagem de Trump como símbolo do perigo autoritário, justificando perseguições e censuras de apoiadores em plataformas digitais.

Jair Bolsonaro, no Brasil, viveu fenômeno semelhante. Seu governo foi constantemente confrontado pelo STF, que expandiu suas competências para interferir em políticas públicas. Simultaneamente, a mídia tradicional construiu uma narrativa de caos, mostrando-se omissa em relação a avanços econômicos.

O resultado foi um ambiente em que qualquer ato presidencial que desagradasse ao sistema era judicializado ou moralmente deslegitimado. Juízes tornaram-se protagonistas da política, tornando cada vez mais tênue a fronteira entre interpretar a lei e governar.

Benjamin Netanyahu, em Israel, é outro exemplo notável. Apesar de liderar por décadas o partido mais votado do país, enfrenta processos judiciais e campanhas permanentes para inviabilizar sua permanência no cargo. Suas tentativas de reformar o Judiciário foram apresentadas como um ataque à democracia, ainda que seu objetivo fosse equilibrar minimamente um sistema no qual juízes não eleitos acumulam poder crescente.


"Quando o eleitor percebe que seu voto pouco altera o curso real da política, o cinismo cresce. Democracias passam a produzir não cidadãos engajados, mas espectadores céticos"

Javier Milei, na Argentina, enfrenta hoje o cerco preventivo de uma elite midiática e sindical que tenta deslegitimar suas reformas econômicas antes mesmo de sua consolidação. A resistência institucional, herdada de décadas de populismo peronista, ameaça paralisar um governo que foi eleito justamente para romper com o status quo.

Apesar das diferenças culturais e institucionais, todos esses casos compartilham o mesmo denominador: a desconexão entre o voto popular e o poder real. Críticos argumentam que isso é uma defesa legítima da Constituição contra excessos populistas.

Mas um modelo no qual ganhar uma eleição não garante o exercício pleno do ato de governar sugere a necessidade de reformas urgentes – no mínimo, para restabelecer o equilíbrio entre os poderes, a isonomia entre os campos políticos em disputa e, last but not least, a liberdade de expressão.

A liberdade de expressão aparece como vítima colateral desse processo, e as eleições se tornam rituais meramente formais, já que o poder real reside em burocracias e grupos não eleitos. Exemplos de ativismo contra governos conservadores, por meio de interferências judiciais e midiáticas, sinalizam não somente um claro desequilíbrio de forças, mas um verdadeiro sequestro da democracia.

Tudo isso gera um efeito devastador: a erosão da confiança pública. Quando o eleitor percebe que seu voto pouco altera o curso real da política, o cinismo e a desesperança crescem. Democracias passam a produzir não cidadãos engajados, mas espectadores céticos. O descrédito no poder das urnas pavimenta o caminho para crises, com alternativas autoritárias ganhando apelo.

O fato é que, nos diversos países onde a esquerda domina o Judiciário e a grande mídia, a democracia deixou de refletir a soberania popular para se tornar uma oligarquia disfarçada: afinal de contas, quem governa — o povo ou elites não eleitas?

A erosão da confiança nas instituições costuma levar a ciclos de revanche. A descrença abre espaço para dois perigos simétricos: o autoritarismo reativo (governos que tentam romper o cerco à força) e o autoritarismo disfarçado (instituições que usam a retórica democrática para conservar o poder). Ambos nascem do mesmo problema: a perda de equilíbrio entre soberania popular e freios institucionais.

Modernizar a democracia parece uma tarefa urgente. Significa devolver ao povo o que lhe pertence — o direito não apenas de escolher governantes, mas de vê-los governar. A essência do regime democrático não está em realizar eleições periódicas, mas em garantir que a vontade nelas manifestada tenha consequência prática.

Sem esse realinhamento, a democracia corre o risco de se tornar uma fachada, um teatro institucional em que o povo vota, mas não decide. O verdadeiro perigo não é o golpe militar nem o populismo carismático: é o sequestro silencioso da soberania popular por elites judiciais, midiáticas e burocráticas que se autoproclamam guardiãs da democracia, enquanto a esvaziam por dentro.



Luciano Trigo - Gazeta do Povo

Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros. Autor de 'O viajante imóvel', sobre Machado de Assis, 'Engenho e memória', sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles infantis.**Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.


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