Supremo sem freios: como o STF instituiu uma juristocracia no Brasil e minou o Estado de Direito


Nos últimos anos, uma transformação silenciosa – porém profunda – tomou corpo no coração institucional do Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF), originalmente concebido como o guardião técnico da Constituição, passou a ocupar o centro do poder político nacional. O fenômeno, apontado por juristas, acadêmicos e advogados, tem nome: juristocracia – um sistema em que juízes, sem representação popular, governam de fato, praticamente substituindo o Legislativo e limitando o Executivo.

Essa reconfiguração da República não se deu por reformas constitucionais nem por plebiscitos. O novo regime emergiu, como apontam juristas que escreveram sobre o tema para a Gazeta do Povo, a partir de decisões judiciais da Corte que, gradualmente, extrapolaram cada vez mais os limites estabelecidos pela Carta de 1988 para a atuação do STF. O que deveria ser autocontenção converteu-se em ativismo. E o que se esperava ser imparcialidade técnica transformou-se em vontade política revestida de toga.

De intérprete da Constituição a legislador

"O STF transformou-se em um poder político – e isso é péssimo para o Brasil", alertou o jurista Ives Gandra da Silva Martins em artigo publicado na Gazeta. Em vez de atuar como "legislador negativo", ou seja, anulando leis inconstitucionais, o Supremo passou a legislar positivamente, impondo decisões e praticamente tomando o lugar do Congresso Nacional em discussões sensíveis e complexas como o aborto, o marco temporal das terras indígenas e a regulamentação das plataformas digitais.

Esses temas, por sua profundidade e impacto, exigiriam deliberação política no Congresso – onde o pluralismo, o voto e o debate prevalecem. Mas o STF os absorveu, deliberou e decidiu, em muitos casos atropelando o Parlamento. Assim, não apenas minou a função legislativa como tornou o direito imprevisível, gerando insegurança jurídica. "A Constituição não outorgou ao Supremo a prerrogativa de criar normas. Quando isso acontece, o princípio da separação dos poderes é afetado", ressalta Gandra. "Hoje temos três Poderes políticos e não dois políticos e um técnico", resume.


O juiz que investiga, acusa e julga

No campo penal, a erosão institucional é ainda mais alarmante. Em investigações como os inquéritos das fake news, das milícias digitais e dos atos antidemocráticos, o Supremo criou procedimentos que afrontam os pilares do devido processo legal. Adriano Soares da Costa, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público, chama o fenômeno de "regime de exceção" e denuncia a criação de um "direito penal do inimigo", onde o juiz que julga é também quem acusa e investiga.

Medidas como prisões preventivas, bloqueio de contas bancárias e suspensão de redes sociais têm sido determinadas sem participação do Ministério Público e sob sigilo, frequentemente baseadas em relatórios de entidades não oficiais. Muitas dessas medidas sequer geram processos judiciais subsequentes – são punições sem julgamento. E, para agravar, as vítimas dessas decisões não têm sequer a quem recorrer: plataformas digitais não podem contestar as ordens judiciais, e os cidadãos sequer são notificados.

Imparcialidade comprometida

A imparcialidade, virtude essencial da magistratura, também parece em declínio, apontam os juristas. Um caso envolvendo o ministro Alexandre de Moraes é emblemático nesse sentido, segundo juristas. Após ser alvo de ameaças, ele declarou-se impedido de julgar a parte do processo que envolvia sua família, mas manteve-se relator da parte que investigava ataques ao Estado de Direito – embora os réus e os fatos fossem os mesmos.

Para o advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, em artigo escrito para a Gazeta, trata-se de "jurisdição voluntarista, despida da imparcialidade". Trata-se de algo tão evidente que até a OAB nacional e seccionais como a do Paraná já se manifestaram contra os chamados "inquéritos excepcionais" conduzidos pelo Supremo, especialmente pela "relatoria estendida e ilimitada" do ministro Moraes. O uso crescente de decisões secretas e a supressão do contraditório têm minado, segundo Casagrande Pereira, a confiança do público no STF. Ele cita a Pesquisa do instituto ProDat que mostrou que a aprovação da Corte caiu de 31% em 2022 para 14% em 2024.


A cultura do magistrado iluminado

Mas os problemas não se limitam à estrutura processual ou à expansão de competências. O historiador Jean Marcel Carvalho França vê, por trás das ações do Supremo, uma cultura de poder tecnocrático que se coloca acima da vontade popular. Inspirados em um ideal de "juiz esclarecido", ministros se consideram legitimados a "educar o cidadão ordinário" e a corrigir, por meio de decisões judiciais, os rumos políticos do país. "Esses juízes passaram a se ver como protagonistas de uma missão transformadora. Não aplicam apenas a lei – tentam impor um modelo de sociedade ideal, baseado em valores que consideram mais justos ou modernos", afirma França em artigo de opinião.

Segundo o historiador, essa postura é fruto da formação universitária enviesada, da influência de ONGs e lobbies internacionais, e de um sistema de seleção que privilegia o alinhamento ideológico. "O direito operado nos tribunais virou-se contra a lei", escreve. A jurisprudência passou a relativizar ou reescrever normas aprovadas pelo Legislativo, esvaziando o papel dos parlamentares e fomentando o descrédito no voto. "Os eleitos já não podem governar – são apenas executores de decisões judiciais", conclui.

O novo regime da toga

Ao acumular funções típicas dos outros Poderes – legislar, administrar, punir, censurar – o Supremo consolidou um papel que a Constituição não lhe atribuiu. Sob o argumento de proteger a democracia, adotou práticas que ferem seus próprios fundamentos: o princípio da legalidade, o contraditório, a separação dos poderes, a soberania popular.


Esse deslocamento de poder institui, de fato, um novo regime. Não mais o presidencialismo de coalizão, com todos os seus defeitos. Mas um presidencialismo tutelado, no qual o Executivo governa sob vigilância constante da Corte, e o Legislativo é frequentemente atropelado. Em última instância, trata-se de uma forma de governo de juízes – sem voto, sem alternância, sem controle. A história mostra que regimes fundados na exceção, mesmo quando motivados por boas intenções, terminam por corroer completamente as bases que pretendiam proteger. Como alertam os juristas, a democracia representativa brasileira, frágil e jovem, corre esse risco. E talvez já o esteja vivendo.


Gazeta do Povo


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