A esquerda que é contra a anistia hoje já se beneficiou dela
Uma parte da esquerda que se opõe à anistia dos presos de 8 de janeiro de 2023 se esquece que foi graças a uma anistia que alguns de seus líderes foram perdoados de crimes graves, que deixariam qualquer um boquiaberto.
José Dirceu, Dilma Rousseff e José Genoino são alguns dos figurões anistiados pela época da ditadura militar, por meio da Lei da Anistia, de 1979. Os dois ainda foram perdoados depois por membros do STF em crimes de corrupção. Os delitos incluindo os dois períodos vão de envolvimento em sequestros, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro à luta armada.
No período da ditadura militar, o jornalista e deputado federal Fernando Gabeira, por exemplo, foi beneficiado pela Lei da Anistia após ter participado do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick em troca da libertação de 15 presos para exilarem no México.
Já José Dirceu foi perdoado nos dois casos. Ele era um dos 15 presos trocados pelo embaixador na luta armada durante a ditadura. Foi anistiado em 1979 e no ano seguinte ajudou a fundar o PT. Mais tarde, foi ministro da Casa Civil do governo Lula e um dos cabeças do esquema de corrupção Mensalão e do Petrolão.
Condenado e preso por um ano de uma sentença de 30 anos, se livrou dos processos. Os ministros do STF, Gilmar Mendes e Luiz Barroso anularam todos os atos processuais contra ele, que agora cogita disputar uma vaga na Câmara dos Deputados em 2026, com apoio de Lula.
Dilma e Lula: anistiados e reembolsados
A ex-presidente Dilma Rousseff e Lula não só foram anistiados como também receberam restituição financeira.
Em maio deste ano, a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos (MDH) reconheceu oficialmente Dilma como anistiada por perseguição política e tortura durante o regime militar e aprovou o valor máximo de indenização, de R$ 100 mil.
O pedido inicial foi feito em 2002, mas por ocupar cargos públicos, ficou suspenso. A ex-presidente integrou os grupos Comando de Libertação Nacional (Colina) e a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Dilma afirma que nunca fez parte da luta armada.
Além da condição de anistiada e a indenização concedida neste ano, Dilma recebeu R$ 400 mil por danos morais em razão dos abusos sofridos durante a ditadura militar – ela sofreu torturas em pau de arara, palmatória, choques e socos, que causaram problemas em sua arcada dentária. Dilma chegou a pedir uma pensão mensal por ter sido demitida da Fundação de Economia e Estatística por questões políticas, mas foi negado.
Já o presidente Lula recebe desde 1993 uma aposentadoria de anistiado político por conta da cassação de seus direitos sindicais, em 1980, e por ter sido destituído do cargo de presidente dos Sindicatos dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP).
O benefício é diferente da indenização concedida aos anistiados porque a aposentadoria se refere a quem foi afastado ou impedido de exercer seu trabalho durante a ditadura.
Procurada para informar o valor atual da aposentadoria, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, não retornou à Gazeta do Povo. Segundo a Agência Lupa, em 2024, o benefício estava em R$ 12.530,72 mensal.
O que foi a anistia de 1979
A anistia aos presos e exilados políticos pelo regime militar foi concedida no dia 28 de agosto de 1979 pelo último presidente da ditadura, João Batista Figueiredo.
A ditadura militar apresentava sinais de desgaste e havia grande pressão popular e internacional para seu fim. Este cenário levou Figueiredo a assinar a lei da anistia e iniciar o processo de redemocratização.
A anistia de 1979 garantia perdão a todos que cometeram “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” desde setembro de 1961 até aquela data. A Lei 6.683, no entanto, excluía os militantes da luta armada que cometeram crimes de “sangue”, como terrorismo, assalto e sequestro.
Mesmo com o apelo da sociedade e de deputados da oposição, Figueiredo não cedeu. Os parlamentarem lembraram que o pai dele, após lutar na Revolução Constitucionalista de 1932, foi anistiado pelo presidente Getúlio Vargas. O general, porém, rebateu que o crime dos terroristas não era meramente político, mas contra a humanidade.
Quem se beneficiou em 1979
A lei beneficiou de imediato cerca de 2.200 pessoas, que puderam deixar a clandestinidade ou retornar ao Brasil após exílio, segundo reportagens da época.
O número exato de anistiados é desconhecido. Muitos só receberam o “perdão” anos depois, como Lula e Dilma, ou até mesmo depois de anos da sua morte. Caso do jornalista Vladimir Herzog, reconhecido como anistiado 50 anos depois de morto pela ditadura, em 1975.
Leonel Brizola, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião, Betinho, Vladimir Palmeira, Carlos Minc e Paulo Freire são alguns dos que se beneficiaram com a lei da Anistia de 1979.
Na volta ao Brasil, depois de exilados no exterior, alguns voltaram à cena política no surgimento de partidos, como o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT), entre outros.
O governador de São Paulo, Tarcísio Freitas, resumiu a contradição favor ao perdão da Justiça antes e não agora em seu discurso em seu discurso na Avenida Paulista, em ato do dia 7 de setembro: “Se o PT existe hoje, é porque houve a anistia. Senão, não existiria. Aqueles que gritam 'sem anistia' foram justamente os beneficiados pela anistia”.
Mais tarde, em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) é publicada a Lei 9.140, conhecida como Lei dos Mortos e Desaparecidos, que estabelece uma reparação pecuniária aos familiares dessas pessoas. Em 2001, o governo criou a Comissão de Anistia.
O banco de dados Anistiados Políticos, da Comissão Nacional de Anistia, aponta que até 31 de dezembro de 2024, 39.984 pedidos foram deferidos e 31.669 foram indeferidos. Havia ainda 5.336 casos arquivados por decisão judicial ou por estarem fora do escopo de atuação da comissão, 2.393 processos aguardam o primeiro julgamento, 765 casos tiveram recurso e passam por revisão, e 210 foram anulados pelo STF.
Perdão também aos torturadores
A exclusão de alguns exilados (crime de sangue) não era a única polêmica acerca da Lei da Anistia de 1979. Ao conceder absolvição dos crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos, exceto aqueles citados nominalmente, a anistia beneficiava os agentes da repressão ao mesmo tempo em que restringia o indulto aos demais presos e exilados.
Essa obscuridade na lei levou presos políticos a fazerem greve de fome para pressionar à uma “anistia total, geral e irrestrita” – slogan criado na época. A pressão social, da imprensa e familiar não surtiu grande efeito. A lei foi aprovada como o governo queria. Nos anos seguintes, os presos que não foram beneficiados pela anistia receberam indulto do presidente ou tiveram seus processos revisados pelos tribunais militares.
“A oposição concluiu que seria melhor ficar com a anistia do governo do que não ter anistia nenhuma. Aquela não era a anistia ideal, mas a possível”, explica Vanessa Dorneles Schinke, professora de direito da Universidade Federal do Pampa e autora do livro Anistia e Esquecimento, à Agência Senado.
A diferença entre 1979 e agora
A anistia é um perdão concedido pelo Estado para alguns delitos. Crimes inafiançáveis, como tortura, tráfico de drogas, terrorismo e hediondos não estão inclusos nesse rol. Tampouco, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado, que são as principais acusações dos envolvidos no 8 de janeiro.
Como a Constituição não prevê indulto a estes crimes, um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados propõe a anistia para os presos nos atos de 8 de janeiro. O ministro Flávio Dino sinalizou que, mesmo que seja aprovada no Congresso, a proposta deve ser considerada inconstitucional no STF e não será aprovada.
A maioria dos ministros é contra a anistia, porque consideram que o perdão incentivaria grupos radicais a atentar contra a democracia e que anularia a condenação de Bolsonaro, abrindo espaço para uma provável candidatura presidencial em 2026.
Para outros, como o ministro Luiz Fux, e parte dos juristas, não dá para colocar todos os presentes do dia 8 de janeiro no mesmo balaio: há os que manifestaram pacificamente, os que destruíram o patrimônio e outros motivos os que cometeram delitos diferentes, portanto, as penas devem ser distintas.
O exemplo mais emblemático da desproporção das penas é a da cabeleireira Débora Rodrigues, que pichou a frase "Perdeu, mané" na estátua "A Justiça", em frente ao prédio do STF. Ela foi condenada a 14 anos de prisão, ficou dois anos em regime fechado e desde março cumpre prisão domiciliar.
A defesa de Débora Rodrigues tem recorrido da decisão para retirar a condenação, mas o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo caso, negou.