Supremo embarca em narrativa antiamericana e dobra aposta de Lula
Na recente operação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e Flávio Dino deixaram transparecer, em seus votos no processo, críticas duras ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, relacionadas ao anúncio da elevação de tarifas ao Brasil. O posicionamento dobra a aposta da política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que afirmou nesta semana que a guerra tarifária vai começar quando ele der a resposta a Trump.
Na decisão da semana passada, que impôs a Bolsonaro utilização de tornozeleira eletrônica, proibição de contato com autoridades estrangeiras e uso de redes sociais, Moraes também manifestou repúdio às sanções americanas.
O ministro escreveu que o ex-presidente e seu filho Eduardo travam “negociações espúrias e criminosas” com os Estados Unidos, que as declarações de Trump são “atentatórias à soberania nacional” e representam uma “gravíssima agressão estrangeira ao Brasil”. A abordagem é similar à de Lula, que associou Trump a um adversário externo ao afirmar que ele atua como um imperador do mundo.
Os votos dos ministros apontam que o Supremo embarcou na narrativa de salvador da pátria. “A história desse Supremo Tribunal Federal demonstra que jamais faltou coragem aos seus membros para repudiar as agressões contra os inimigos da Soberania nacional, Democracia e Estado de Direito, sejam inimigos nacionais, sejam inimigos estrangeiros”, afirmou ainda Moraes na decisão.
Ao referendar a decisão, Flávio Dino classificou o anúncio do tarifaço, por Trump, de “intolerável estratégia de retaliação política, que afronta a soberania nacional ao constranger as instituições públicas brasileiras”.
“Esta coação assume uma forma inédita: o ‘sequestro’ da economia de uma Nação, ameaçando empresas e empregos, visando exigir que o Supremo Tribunal Federal pague o ‘resgate’”, escreveu ainda o ministro.
No julgamento das restrições impostas a Bolsonaro, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin seguiram Moraes, mas não expressaram críticas ao tarifaço.
Luiz Fux divergiu e argumentou que as sanções não têm poder de influência sobre a Justiça brasileira e que “questões econômicas devem ser resolvidas nos âmbitos políticos e diplomáticos próprios”, pelo governo e pelo Congresso.
Lula já havia dito que poderia aplicar a lei da reciprocidade e aplicar as mesmas tarifas de 50% a produtos americanos vendidos no Brasil e afirmou na segunda-feira (21): "A guerra tarifária vai começar na hora que eu der a resposta ao Trump, se não mudar de opinião".
Posição sobre big techs e relação com a China devem pesar mais que Bolsonaro, dizem analistas
Os votos dos ministros e as declarações de Lula que sugerem confronto com a posição de Washington ocorrem em um cenário em que a maioria da população brasileira se mostra contrária à ação de Trump. A pesquisa mais recente, da Quaest, diz que 72% dos brasileiros acham que o americano errou ao ameaçar taxar os produtos exportados pelo Brasil em 50% sob o argumento de que há perseguição judicial ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A mesma pesquisa mostra leve alta na aprovação de Lula, que subiu três pontos percentuais e chegou a 43%. A Quaest entrevistou 2.004 pessoas de forma presencial entre os dias 10 e 14 de julho. A margem de erro é de dois pontos porcentuais e o índice de confiança é de 95%.
Enquanto o Executivo e o Supremo apostam no confronto, países como México e Canadá, que também tiveram tarifas elevadas sob alegações políticas, preferiram negociar com o presidente americano.
Segundo analistas ouvidos pela reportagem, mais importante do que as declarações dos ministros ou de Lula sobre Bolsonaro será a reação do governo brasileiro frente à pressão americana em favor de suas empresas de tecnologia e para que o país amenize sua posição antiamericana no bloco diplomático dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia, Indonésia e Irã).
Para Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM, o caso Bolsonaro é só um pretexto usado por Trump para pressionar o Brasil a se afastar da China.
“O Bolsonaro é só a desculpa oficial para toda essa movimentação da Casa Branca. Para mim, fundamentalmente, o objetivo é bater no Brasil, para o Brasil abandonar toda essa retórica antidólar nos Brics. É também dar um recado para o governo brasileiro de que está se aproximando demais da China”, diz o analista.
Doutor em Ciência Política e coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec, Adriano Gianturco também avalia que Bolsonaro não é a questão principal para Trump. Para ele, o presidente americano está tentando forçar aliados históricos a se reaproximar dos Estados Unidos em um momento de fortalecimento geopolítico da China.
“Os Estados Unidos estão perdendo poder relativo e Trump está querendo reposicionar seus aliados históricos com os Estados Unidos e não com a China, Rússia, Irã, Venezuela, Nicarágua, etc.”, diz o professor.
Gianturco, de qualquer modo, considera inadequadas as declarações dos ministros do STF, “tanto no mérito, quanto na forma, quanto por quem se expressou”. Para ele, existe perseguição política a Bolsonaro no STF e juízes não deveriam interferir em relações internacionais.
“Falar de ataque, sequestro, coação... Não tem nada disso. O que tem dos Estados Unidos é algo desse tipo: ‘se vocês continuarem dessa forma, cometendo ilegalidades e perseguindo adversários políticos, nós vamos colocar entraves, um custo mais alto para fazer negócios conosco’. Tecnicamente falando, não é coerção. É deixar de fazer algo, tornar algo mais difícil. Não tem coerção nenhuma”, diz.
Cerco brasileiro sobre as big techs preocupa Trump
Uma questão mais importante para Trump, dizem os analistas, é a regulação das empresas de tecnologia americanas, que vêm sendo alvo do STF. Na carta endereçada a Lula, na qual ameaçou elevar as tarifas de comércio bilateral, Trump condenou “centenas de ordens de censura secretas e injustas para plataformas de mídia social dos EUA, ameaçando-as com multas de milhões de dólares e expulsão do mercado de mídia social brasileiro”.
Em junho, o STF derrubou parcialmente o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que adotava o paradigma de regulação americano, segundo o qual plataformas não podem ser responsabilizadas pelo conteúdo postado por usuários.
No julgamento, o STF impôs novas obrigações de monitoramento de conteúdo para as redes sociais, sob pena de serem condenadas a pagar indenizações. Vários ministros condenaram a atuação das big techs.
Moraes disse que elas adotam “modelo de negócio agressivo e perverso” porque, para lucrar, permitem ampla disseminação de discursos de ódio, mentiras e “ataques às instituições”.
Gilmar Mendes concordou. “A desagregação política observada no ambiente digital não constitui uma consequência não intencional da operação dessas plataformas, mas sim da lógica fundamental que governa esses modelos de negócios”, afirmou.
Para Dino, “as redes sociais não aproximaram a humanidade da ciência, tampouco da filosofia, muito menos ainda da religião”. “Se dependessem de mim, receberiam um juízo extremamente negativo em relação ao que vêm produzindo nas sociedades humanas”, afirmou o ministro.
Para Gianturco, essa visão negativa dos ministros, similar à do governo Lula, sobre as empresas de tecnologia americanas afasta mais o Brasil dos Estados Unidos. Ele cita iniciativas em curso, dentro dos Brics, para criar sistemas de pagamento e redes de conexão à internet alternativos aos americanos.
“Está chegando aqui no Brasil a Union Pay, que é o cartão de crédito chinês, que é o maior do mundo, inclusive já superou Visa, Mastercard. Ela opera fora do sistema Swift, através de outro sistema. Caso isso se concretize, significa mais concorrência para as empresas americanas e a possibilidade de operar em outra plataforma e aí de escapar de possíveis sanções no sistema financeiro”, diz. O Swift é um sistema de mensageria entre bancos do Ocidente que possibilita a emissão de ordens de pagamento por onde passa o maior volume de transações comerciais internacionais.
“O Brasil está tentando via Brics e via China criar um sistema de cabos submarinos para internet alternativo aos cabos americanos e aos satélites de Elon Musk. Tudo isso para quê? Para ter uma alternativa às possíveis sanções americanas no caso de desrespeito a direitos básicos”, diz.
Os países dos Brics revelaram ter apetite para criar uma rede de cabos submarinos independente das potências ocidentais, mas a ideia está ainda na fase de estudo de viabilidade técnica.
Na segunda-feira (21), o vice-presidente Geraldo Alckmin, que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, se reuniu com representantes de empresas de tecnologia americanas em Brasília. Encarregado de negociar uma solução para o tarifaço com os Estados Unidos, ele saiu do encontro informando que as empresas “ficaram de nos encaminhar, na sequência, algumas questões que para eles são mais relevantes”.
Além do tarifaço, Trump também abriu uma investigação comercial contra o Brasil por práticas supostamente “desleais”, inclusive por causa do Pix, sistema de pagamento do Banco Central gratuito que reduz transações com cartões de crédito.
Gunther Rudzit diz acreditar que Alckmin está “tentando aparar essas arestas” com os EUA no setor de tecnologia e financeiro.