“Vaza Toga” expõe o “sistema chinês” de Moraes no TSE e no STF
A ordem de prisão domiciliar expedida por Alexandre de Moraes contra Jair Bolsonaro, na segunda-feira, acabou ofuscando aquele que deveria ser o grande fato em Brasília, comentado extensivamente por todos os veículos de comunicação, tamanha a sua gravidade. Falamos de uma nova leva de mensagens trocadas por assessores de Moraes, obtidas pelos jornalistas Eli Vieira e David Ágape e divulgadas pelo também jornalista Michael Shellenberger. Se na primeira rodada da “Vaza Toga” ficou evidente a existência de uma atuação “fora do rito” (um eufemismo para o que ficaria melhor chamar de conluio) em que estruturas do TSE eram usadas para ajudar a fundamentar decisões de Moraes em inquéritos no STF, as novas mensagens mostram que a “Justiça paralela” foi muito mais longe.
Funcionários das duas cortes – incluindo juízes auxiliares de Moraes – foram recrutados para montar uma espécie de unidade informal de inteligência que funcionava por meio de um grupo de WhatsApp. O objetivo era vasculhar a presença on-line dos brasileiros detidos nos acampamentos em frente a quartéis do Exército após os atos de 8 de janeiro de 2023, de forma que seu destino era decidido com base nessas publicações. As mensagens indicam que Moraes teria até mesmo autorizado militantes políticos, universidades e agências de checagem a se infiltrar em grupos privados de troca de mensagens, usando seu e-mail pessoal para não deixar rastros institucionais. A administração desta força-tarefa informal estaria a cargo de Cristina Yukiko Kusahara, chefe de gabinete de Moraes no STF.
Se Gilmar Mendes disse em junho que “nós todos somos admiradores do regime chinês”, Alexandre de Moraes o colocou em prática: uma simples crítica passou a fazer a diferença entre a liberdade e a Papuda ou a Colmeia
Uma das principais tarefas deste grupo era a elaboração de “certidões”, que podiam ser positivas ou negativas, dependendo do tipo de publicações feitas pelas pessoas investigadas ou detidas. Qualquer crítica que tivesse sido feita ao STF, ao PT ou ao presidente Lula bastaria para uma “certidão positiva”, que por sua vez transformaria a vida do detido em um inferno. Os exemplos dados são escabrosos. Um artesão ganhou uma “certidão positiva” por publicar uma imagem com os dizeres “fazer cumprir a Constituição não é golpe”. Um caminhoneiro foi classificado da mesma forma por chamar de “vendidos” os ministros do STF e questionar “como esse cara [Lula] conseguiu 60 milhões de votos?”. Um ambulante apenas publicou críticas a Lula e ao PT. Em outro episódio, Cristina Kusahara dizia aos colegas que, apesar de a Procuradoria-Geral da República (PGR) ter pedido a soltura de um grupo de detidos do 8 de janeiro, Moraes não queria atender o pedido “sem antes a gente ver nas redes se tem alguma coisa”.
Tudo isso, a julgar pelos conteúdos divulgados, era feito de forma totalmente oculta: nem a PGR, nem os advogados de defesa dos réus do 8 de janeiro tinham acesso a tais “certidões” – se é que sabiam de sua existência até agora. A apuração de Vieira e Ágape indica que os membros da “Justiça paralela” de Moraes usaram dados da Receita, do cadastro nacional de portadores de habilitação e até do banco de dados biométrico do TSE, violando a Lei Geral de Proteção de Dados. Tudo circulava à margem dos procedimentos processuais legais e da chamada “cadeia de custódia”, que garante a integridade das evidências colhidas em uma investigação criminal.
Em resumo, se Gilmar Mendes disse em junho que “nós todos somos admiradores do regime chinês”, Alexandre de Moraes o colocou em prática: uma simples crítica passou a fazer a diferença entre a liberdade e a Papuda ou a Colmeia. As novas mensagens revelam a existência de um sistema de “fichamento ideológico” no qual pouco importam eventuais crimes reais cometidos pelas pessoas; são suas opiniões que, no fim das contas, determinam o destino de quem foi preso na Praça dos Três Poderes ou no dia seguinte, diante dos quartéis – ainda que vários desses detidos não tivessem estado nos atos de vandalismo da véspera. Não há outro nome para isso, a não ser totalitarismo.
Já não faltavam motivos para que Hugo Motta finalmente colocasse em funcionamento a CPI do Abuso de Autoridade na Câmara dos Deputados; as novas mensagens apenas reforçam a sua urgência. A CPI é, hoje, a única instância que tem o poder de lançar luz sobre o sistema repressivo montado por Moraes, ouvindo todos os envolvidos – especialmente o ex-assessor do TSE Eduardo Tagliaferro. E o único obstáculo para que isso ocorra é a covardia, especialmente da imprensa e de formadores de opinião que se recusam a dar ao assunto a repercussão que ele merece, e de Hugo Motta, que até agora não autorizou a abertura da CPI, embora ela cumpra todos os requisitos constitucionais. Felizmente, este é obstáculo superável; basta que os envolvidos consultem suas consciências e se perguntem se querem mesmo passar para a história como lacaios de autocratas, ou se querem deixar um legado positivo para o Brasil.